É preciso enfrentar legado de violência em massa do nosso passado

Uma reflexão sobre o passado e a violência escrita pela ativista do CNA-Brasil Verena Kirejian Bertaglia para a importante revista jurídica CONJUR centrada no caso do Genocídio Armênio.

Por Verena Kirejian Bertaglia

(conjur.com.br) Em 18 de setembro de 2014 o Ministério Público Federal promoveu o evento intitulado Direito Humanos Internacionais: O papel dos Estados na Promoção e Proteção, composto por duas mesas com palestras proferidas pelo então embaixador americano George E. Moose, professor adjunto e conferencista em Práticas Internacionais na Elliott School de Relações Internacionais da Universidade George Washington.

A primeira mesa, presidida por Pedro Barbosa Pereira Neto, procurador-chefe da PRR-3, teve a participação de Guilherme de Almeida, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo que também é presidente da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação (ANDHEP), ambos dissertaram sobre como conciliar particularidades culturais com a visão universal dos Direitos Humanos no mundo.

A segunda mesa, presidida por Isac Barcelos Pereira de Souza, procurador da República, contou ainda com Rodrigo Medina Zagni, historiador e professor do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo, para abordar a problemática de até que ponto a violação de Direitos Humanos justifica interferência; se há, nesse sentido, limites para a soberania, bem como qual seria então o papel dos Estados Soberanos da Comunidade Internacional na proteção das populações contra genocídio, crimes étnicos, crimes de guerra e crimes contra a humanidade, dentro do contexto da “Responsabilidade de Proteger”.

O embaixador, recordando que esteve na África durante o Genocídio de Ruanda, destacou que em situações como esta, o tópico de reflexão era: a passagem das palavras à ação em suas vias de fato quanto à intervenção. Por isso, no ano de 2000, foi criada uma comissão por Kofi Annan, sétimo secretário-geral das Nações Unidas, onde o desafio da Comunidade Internacional era encontrar uma resposta que considerasse o conceito de soberania em contrapartida a ideia de necessidade de intervenção; em 2004, após o ocorrido no Iraque, Kofi Annan, junto à uma comissão, endossou a doutrina da Responsabilidade de Proteger, que em 2005 foi incorporada no documento final da Cúpula Mundial como conceito de política internacional.

Os pilares da referida doutrina seriam então:

1º) Responsabilidade de cada Estado proteger seu próprio povo.

2º) Responsabilidade da Comunidade Internacional no auxílio aos Estados quando estes não estiverem prestando efetiva proteção à seu povo. Não necessariamente se dando através de sanções, mas sobretudo de incentivos.

3º) Responsabilidade da Comunidade Internacional em intervir quando um Estado não estiver protegendo seu povo, mesmo que para isso se utilize força militar; porém, para tal se faz necessário um critério, e o adotado é a submissão do caso concreto à Corte Internacional de Justiça.

Importante ressaltar que o terceiro pilar deve ser a “ultima ratio”, adotado portanto apenas quando exauridas as possibilidades dos dois primeiros pilares.

Segundo o embaixador, depois do ocorrido em 11 de setembro de 2001, com o atentado terrorista ao World Trade Center, para os Estados Unidos a prevenção de atrocidades em massa e genocídios foi considerado um interesse chave bem como um dever moral; de forma que ainda que hajam outros interesses em questão a prioridade deve ser sempre essa prevenção. Se faz necessário entender o que são atrocidades em massa; quais episódios, dentro de uma sociedade, indicam uma atrocidade em potencial; identificar situações de violações à Direitos Humanos que estão por ocorrer dentro de determinado contexto; é preciso identificar indícios que apontem uma agressão em potencial para que seja possível agir de maneira preventiva à ela.

Àquele momento a pergunta que dirigi ao Embaixador foi:

“O senhor elogiou a Turquia pela manhã quanto à ótica dos Direitos Humanos, mas como sabemos, a Turquia só se edificou como a grande potência que é hoje frente à Comunidade Internacional, através da prática de diversas agressões aos Direitos Humanos. Estou me referindo ao episódio ocorrido em 1915, onde os turcos otomanos perpetraram uma política de extermínio contra o povo armênio, ceifando assim aproximadamente um milhão e quinhentos mil civis, que à época corresponderia à dois terços de toda a população armênia; sendo portanto este o um dos primeiros genocídios conhecidos do sec. XX, cuja impunidade fez dele modelo paradigmático para todos os outros então genocídios que ocorreram e ocorrem após ele até os dias atuais. Então como o senhor vê a inércia da Comunidade Internacional frente ao reconhecimento e devidas sanções à esse crime, pois como sabemos, a sanção não tem apenas a função de punir o praticante do crime, mas também de inibir a ocorrência de outros crimes de mesma natureza?”

De maneira extremamente cordial, após pedir desculpas por de fato não estar esperando por perguntas desta complexidade, o embaixador disse que se esmeraria para respondê-la da melhor forma possível mesmo assim:

“O passado de todos os países possui episódios que colocam em xeque os Direitos Humanos… Se olharmos para a história dos EUA quanto ao tratamento dos índios nos séculos XVIII e XIX veremos que ainda há muitas coisas à serem levadas à julgamento, inclusive no Brasil, porque essas questões ainda têm impacto nos dias atuais… O nosso desafio então é chegar à um ponto de reconhecer as questões do passado, porém sem tirar o crédito da capacidade de participar de debates internacionais… O Brasil também quanto ao período militar e chegar à uma solução, pelo menos um reconhecimento e fazer uma composição com seu povo, seu legado; assim como ocorreu com o Apartheid onde eles reconheceram seu tratamento brutal. Se nós formos exigir mãos limpas para participar do debate, não teremos ninguém para conversar porque ninguém as tem; mas temos sim que encontrar formas de redenção através do reconhecimento de nossos erros.”

Na última quinta-feira (29/10), por unanimidade, o Senado do Paraguai — país que guarda do nosso Brasil lembranças de um passado sombrio (1) refletidas até hoje em sua sociedade — reconheceu o Genocídio Armênio, condenando a Turquia por crime lesa-humanidade (resolução 0003/3). Já os EUA continua inerte frente à essa questão e tantas outras que dizem respeito aos Direitos Humanos, mas que infelizmente no momento não lhe são convenientes, ou pelo menos não tão conveniente quanto por exemplo o acesso à base aérea de Incirlik — Turquia, para onde Obama acaba de autorizar o envio de aeronaves (2). Cabe salientar a Aliança Militar intergovernamental em que EUA e Turquia figuram como países-membros desde 1949, durante a Guerra Fria, por meio da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).

Ao escrever esse artigo pensei em retomar aquela conversa com George E. Moose, como quem faz uma tréplica, para dizer aquilo que aprendemos com nosso progenitores e familiares quando ainda somos crianças: “É preciso lavar as mãos ao sentar à mesa”. Ainda que ninguém tenha mãos limpas, a Comunidade Internacional então deveria adotar como critério a identificação do “animus”(3) em lavá-las como um pré-requisito necessário àqueles que queiram juntar-se ao debate, dignificando-o. É fundamental que haja o enfrentamento do legado de violência em massa de nosso passado, atribuir responsabilidades, exigir a efetivação do direito à memória e à verdade, para que assim consigamos fortalecer as instituições com valores democráticos garantistas que impeçam a repetição de atrocidades. (4)

A Alemanha se faz como exemplo disto, hoje, através da efetivação da justiça de transição procura redimir-se de seu passado negro nazista(5); inclusive, assumindo o risco de dissabores com a Turquia, com quem possui estreita relação, a Alemanha não só reconheceu o Genocídio Armênio, como também assumiu sua corresponsabilidade no crime; o presidente Joachim Gauck declarou:

“Soldados alemães participaram do planejamento e, em parte, nas deportações de armênios. As informações de observadores e diplomatas alemães deixaram clara a vontade de extermínio contra os armênios e foram ignoradas porque o Reich alemão era aliado do Império Otomano” (6).

A Primeira Guerra Mundial serviu como cortina de fumaça para que os Jovens Turcos (7) colocassem em prática seu plano de extinção do povo armênio (8), pois o mundo estava voltado para o estardalhaço que fazia o conflito entre a Tríplice Entente, liderados por Inglaterra, França e Rússia versus a Tríplice Aliança, liderados pelo Império Austro-Húngaro, Império Alemão e Império Otomano.

Para concluir nossa reflexão imprescindíveis são as palavras de Samantha Power:

“O genocídio ocorre pela inação da comunidade internacional, que toma um papel passivo na prevenção e sanção dos crimes contra a humanidade”

1)Guerra do Paraguai 1864 – 1870 onde o Brasil Império, que integrava a Tríplice Aliança junto com a Argentina e o Uruguai, dizimou a população do Paraguai.

2) http://www.dw.com/pt/obama-vai-enviar-forças-especiais-à-s%C3%ADria/a-18817954

3) Do Latim animus utilizado para designar ânimo, intenção, vontade, inclinação

4) Conforme documento produzido pelo Conselho de Segurança da ONU – UN Security Council- The rule of law and transitional justice in conflict and post-conflict societies.

5) http://www.dw.com/pt/como-os-alemães-aprendem-sobre-o-nazismo/a-18713915

6) http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/04/presidente-alemao-reconhece-genocidio-armenio-de-1915.html

7) Alcunha pela qual ficaram conhecidos os membros do Comitê União e Progresso que governavam o Império Otomano à época

8) Minoria étnica que vivia sob o controle otomano

Verena Kirejian Bertaglia é formanda em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Ativista do Conselho Nacional Armênio – Sucursal Brasil.